Gosto muito de ler o que um senhor chamado José Luís Peixoto escreve. Gosto dos seus romances, das suas crónicas, dos seus contos, dos seus poemas.
Gosto tanto que decidi fazer uma brincadeira com um deles e mostrá-la aqui…
Abaixo está um pequeno leitor áudio onde podem ouvir a leitura que fiz do poema que aqui transcrevo.
o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema,
lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não se escrevem,
lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar de doce menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias do verão
e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu fui
feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p e
comia torradas feitas no lume da cozinha do quintal,
o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas e sem metáforas,
que te amo, o poema será quando as crianças e os
pássaros se rebelem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer o que possuímos e não possuímos nada,
não é um torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque a palavra poema é uma palavra, o poema é a
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados na hora em que todos dormem, é a última
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o poema não têm estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.
José Luís Peixoto
ja ouvi isto em algum lugar…
joao von gilsa
Pois já
😉
Que lembranças, de um certo espectáculo que realizamos no dia 25 de Abril “Entre versos a vida”
Enfim já lá vai!
Fantástico, simplesmente!
Parece que foi ontem! foi fantástico tornar um palco num bar cheio de personagens, cada uma com a sua historia, mas com algo em comum. Eu representava a solidão, aquilo que hoje em dia é muito comum entre os seres humanos,ainda me lembro como se estivesse sentada naquela mesa com um copo, que tremia nas minhas mãos de nervosismo ou de emoção e olhava para as minhas mãos para ver quem era, ” olho as minhas mãos nas minhas mãos tudo passa, tudo morre, tudo sufoca ate ser nada” encarnava naquela mulher que dava nas vistas mas que no fundo não tinha nada!
ainda oiço o burburinho e de repente soa uma melodia linda de fundo, onde todo o mundo se calava que vinha do saxofone…..
tenho que dar vos os parabéns por terem construído uma obra com poesia que parecia tudo tão natural e tudo interligava entre si, já tenho saudades, muitas saudades… no meu ouvido ainda oiço o saxofone e as vossa vozes…
Obrigada! Adorei ouvi-lo! Eu já gostava muito deste poema, mas a sua leitura (excelente!) “prendeu-me” ainda mais a ele.
Obrigado Cláudia por teres partilhado este pequeno grande momento de poesia comigo. Lindo demais…
Realmente, quem sabe,sabe mesmo!
Obrigado à Cláudia e ao Miguel pela visita e pelos simpáticos comentários.
Esse poema é super super bom. Adorei. Beijos.
Simplesmente “SAUDADE”…….
Lírico..
tremendo!
Obrigado pela simpatia Carla.